Com cada novo nicho explorado por novas práticas de mercado, surgem controvérsias por causa da tecnologia e das mudanças de hábitos que ela causa. O principal desafio da legislação é adaptar-se a essas novas práticas. E no Brasil, a lei vem se adaptando. Em março deste ano, foi promulgada a Lei Federal de 12.643, que reconhece explicitamente a legalidade do transporte privado de passageiros.
Esse é um dos pontos levantados pelo advogado Fernanda Kayser, de Silveiro Advogados, em entrevista ao Com júri. Fernanda destaca que, além de acalmar algumas controvérsias sobre a legitimidade do serviço, o texto impôs algumas condições, como a necessidade de seguro contra acidentes pessoais (PPP).
Antes da legislação federal, algumas iniciativas municipais já apontavam para a necessidade de maior regulamentação dos serviços, como o Decreto 56.981 / 2016, na cidade de São Paulo, que obrigava os pedidos de dados para a cidade.
O advogado falou sobre os desafios do direito brasileiro diante da realidade imposta pela economia compartilhada.
Leia a entrevista abaixo:
ConJur – Quais são as questões mais urgentes que a legislação brasileira precisa mudar para se adequar à realidade imposta pelas novas tecnologias e aplicações?
Fernanda Kayser – As tecnologias estão avançando a uma velocidade em que a legislação não pode e não deve avançar. Há um tempo de maturação necessário para compreender as mudanças sociais, para discutir se há necessidade de mudar ou criar nova legislação, e como melhor adaptar os novos comportamentos. O estudo e o debate devem estar acontecendo constantemente. Hoje, ainda falta compreensão consolidada de todos os impactos que a economia compartilhada vem causando.
Acredita-se que, a princípio, é importante entender a nova alocação de responsabilidades que esse fenômeno traz: até então, na lógica comum, estamos sempre diante de uma relação binária – empresa com empresa, empresa com consumidor, consumidor com consumidor – já na economia compartilhada, existem três agentes envolvidos: duas pessoas fazendo a transação e a plataforma do meio (que fornece tal conexão). Existem plataformas mais ativas, outras menos ativas – mas o fato é que devemos pensar em uma nova lógica de realocação de responsabilidade apropriada à situação que se apresenta.
Até certo ponto, este foi um ponto que foi discutido no Marco Civil da Internet com a responsabilidade dos provedores de conexão e aplicação de conteúdo publicado por terceiros. Hoje, com diferentes agentes, nos deparamos novamente com o papel desses intermediários em relação a outras esferas de responsabilidade.
ConJur – Em que pontos avançamos nessa área nos últimos anos?
Fernanda Kayser – A legislação brasileira vem se adaptando. Em relação às aplicações do transporte coletivo de passageiros, em março do ano passado, foi promulgada a Lei Federal nº 12.643, que reconhece explicitamente a legalidade desse serviço e, portanto, trouxe um importante avanço ao arcabouço normativo nesse sentido.
No ano passado, também vimos o primeiro regulamento referente a pedidos de arrendamento de curto prazo (como o Airbnb): a cidade de Caldas Novas aprovou legislação impondo algumas obrigações aos anfitriões desse aplicativo, a fim de remediar externalidades negativas dessas transações.
Em relação à economia compartilhada como um todo, existe atualmente uma Comissão Especial que analisa a criação de um Marco Regulatório para o assunto, ou seja, as respostas jurídicas aos desafios desses novos tipos de negócios já começaram a ser debatidas.
ConJur – O registro civil foi um grande avanço? O que está faltando dele?
Fernanda Kayser – O Código Civil foi um avanço para toda a sociedade em relação à segurança jurídica na internet. Logo após sua promulgação, levantou dúvidas, já que demorou dois anos para o Decreto 8.771, que regulamentaria o Marco, a ser promulgado em 2016. Hoje, e ao longo do tempo, acredita-se que ainda existem alguns pontos frágeis: por exemplo, Nas últimas eleições, percebeu-se que o sistema de aviso e remoção notificação judicial era uma barreira para notícias falsas, que são divulgados em alta velocidade. Portanto, isso pode ser um ponto necessário de revisão e melhoria.
Outra questão que ficou pendente no Civil Internet Framework foi a questão da privacidade – que foi o foco das discussões no ano passado.
ConJur – O que você acha sobre uma lei de dados e uma agência que regula o assunto?
Fernanda Kayser – A Lei de Dados do Brasil, promulgada em agosto passado, foi um grande avanço, provando ser totalmente necessário em relação ao direito à privacidade. Praticamente foi importado o entendimento europeu sobre o assunto, aquele que está em linha em todo o mundo.
O consumidor certamente ganhou muito com a nova lei, seus direitos e liberdades fundamentais foram devidamente protegidos com os novos regulamentos.
A agência reguladora que estava prevista na Lei foi vetada pelo presidente quando sancionou a lei, alegando que não cabia ao Congresso criar, mas ao Poder Executivo. Como prometido, através da medida provisória 869, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) foi criada no final do ano passado, órgão ligado à Presidência da República. A criação desta maneira, no entanto, levanta dúvidas sobre uma eventual inspeção "suave" aos órgãos públicos.
ConJur – Apesar de alguns casos em que o Tribunal vê a relação de emprego da Uber com os condutores, prevaleceu o entendimento de que se trata de uma relação comercial. Você acredita que o Judiciário já está avançando no entendimento dessa nova economia?
Fernanda Kayser – Eu acredito que sim. É possível fazer uma analogia com o caso dos revendedores de cosméticos da marca Avon, onde sua relação de trabalho com a empresa foi amplamente discutida.
Embora haja muita controvérsia sobre esse tema, e de fato há muito a ser questionado sobre dependência com a instituição intermediária, meios de apoio, metas veladas, entendeu-se que era uma relação comercial. O emprego, como vemos, está mudando profundamente, e espera-se que a justiça também mude para atender às demandas e à agilidade das mudanças tecnológicas, mas sempre tendo como limite e centro a dignidade da pessoa humana.
ConJur – Como estabelecer um regulamento / legislação que organize estas questões, dando segurança ao cliente e à sociedade, mas de uma forma que não codifique o serviço?
Fernanda Kayser – Este é o grande desafio! É necessário olhar para vários fatores: a verdadeira necessidade de ter alguma regulação e, em caso afirmativo, quando deve existir e em que intensidade. É essencial entender a nova lógica de alocação de responsabilidades e nunca perder de vista a proteção dos mais vulneráveis.